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Não é de hoje que nos preocupamos com este assunto no
movimento espírita. Ainda há pouco tempo, em palestra proferida na “Mocidade
Espírita do Estado de São Paulo”, cujo ambiente nos causou a melhor impressão
possível, fizemos ver (e não dissemos com isto nenhuma novidade, bem o sabemos)
que o Espiritismo é uma doutrina bastante arejada para nos fazer compreender
certos fenômenos da nossa época.
Todavia, e nunca é demais insistir
neste ponto, é indispensável que os responsáveis pela divulgação e apresentação
da Doutrina procurem se atualizar, principalmente em relação às mais frisantes
exigências do momento. A cultura desatualizada, ainda que tenha grande lastro de
erudição, corre o risco de ficar estagnada diante de fatos novos. Muita gente
pensa que a condição de espírita nos afasta do mundo ou nos põe completamente à
margem das aquisições científicas e das descobertas do pensamento. Pensar assim
é colocar-se em contraposição ao próprio espírito progressivo da
Doutrina.
Se o Espiritismo não teme as descobertas da Ciência, como disse
Allan Kardec, certamente os seus adeptos mais esclarecidos, os seus propagadores
mais convictos devem acompanhar as atividades culturais, notadamente nos campos
que ofereçam mais elementos de confronto com o Espiritismo. Não se deve, pois,
abandonar a curiosidade intelectual, que é uma necessidade do espírito, é um
meio de se ficar em dia, tanto quanto possível, com a evolução geral dos
conhecimentos e das ideias.
Já se vê, portanto, que o Espiritismo, já
pela sua estrutura, já pelas suas consequências, não pode ser limitado por uma
concepção qualquer, como se realmente temesse os desafios da Ciência e do
raciocínio claro. O Espiritismo é uma doutrina de natureza transitiva, porque
procura comunicação com o mundo exterior a fim de interpretar os fenômenos da
vida e da cultura em todos os seus aspectos. Não é, nem poderia ser uma doutrina
hermética, nem muito menos devocional.
Todas as revoluções científicas,
na Biologia como na Psicologia, na Astronomia como na Física, e assim por
diante, interessam ao Espiritismo, uma vez que a sua doutrina estuda “um dos
elementos constitutivos do Universo” e, por isso mesmo, “toca forçosamente na
maior parte das ciências”. Quem o afirma é ainda Allan Kardec (“A Gênese”, cap.
I, item 18). Estamos vendo, assim, que o Codificador encara o Espiritismo
através de uma perspectiva universalista, sempre com o sentido de conjunto, pois
a Verdade não é exclusivista nem se configura por inteiro dentro de um
compartimento ou de um sistema de ideias. A Verdade manifesta-se em várias
direções do espírito, e de vários modos, através de uma rede infindável de
experiências e contribuições.
O Espiritismo tem, portanto, uma visão
global do conhecimento. Dentro dessa concepção, que transcende a toda e qualquer
posição unilateral, podemos muito bem considerar certos fenômenos à luz da
Doutrina Espírita, ainda que esses fenômenos ocorram em searas estranhas. Não
nos esqueçamos de que o Espiritismo tem relação com diversas
ciências.
Se, por exemplo, surge um conceito novo de matéria, devido a
uma pesquisa especial ou revolucionária, podemos e devemos testar esse conceito
com o Espiritismo e verificar, depois disso, se há realmente alguma novidade ou
se advém daí algum enriquecimento para a Doutrina. Há ocasiões em que certas
novidades são apenas rótulos, mas também há ocasiões em que se colhe
alguma coisa interessante para aumentar o cabedal que a doutrina já consagrou no
tempo e no espaço; o que não está certo, o que não é atitude espírita é ignorar
um fenômeno ou não tomar conhecimento de uma descoberta científica, seja lá onde
for, venha por quem vier, desde que nesse fenômeno ou nessa descoberta haja um
aspecto positivo, haja um ponto de interesse para o Espiritismo. Até mesmo no
campo do materialismo — e nisto se vê a liberalidade e amplitude do Espiritismo
— se aparecer uma verdade ou se alguém revelar um fato novo, essa verdade ou
esse fato deve merecer a nossa atenção.
O Espiritismo não pode ignorar a
desintegração atômica, como não pode ficar indiferente às viagens
interplanetárias nem deve permanecer alheio às investigações da Parapsicologia
ou de qualquer outra escola que estude o psiquismo humano, apesar das
divergências de interpretação.
Cabe ao Espiritismo, nesta mesma ordem de
ideias, mostrar os exageros e os equívocos da Psicanálise, mas não deve tomar
atitude hostil ou repelir a investigação psicanalítica, a não ser quando essa
investigação se desgarra do verdadeiro espírito científico, Enveredando pela
desonestidade ou pelos recursos interesseiros. Fora disto, no terreno elevado ou
imparcial da perquirição científica, o Espiritismo não pretende condenar
coisa alguma, porque lhe cumpre observar e analisar sempre. Este, na realidade,
é o espírito da Doutrina. Cabe, agora, aos seus adeptos a parte de execução, que
é nada mais nada menos, a afirmação desse espírito em seus comportamentos
perante as solicitações da cultura e as circunstâncias da vida.
Se
aparece uma teoria nova, por mais discrepante que ela se nos afigure, o que
devemos fazer é examiná-la, criticá-la se for necessário, mas nunca devemos
chegar ao extremo das reprovações inquisitoriais, pois o Espiritismo também não
receia a luz de nenhuma teoria ou ideia renovadora. Em nenhum caso, fosse qual
fosse o pretexto, seria admissível o imprimatur no meio espírita.
O campo das ideias deve ser livre, tanto quanto é livre o campo da
crítica e da discordância. Não importa que uma obra venha do Alto ou tenha
origem terrena, pois todas as ideias, qualquer que seja a fonte ou o veículo,
podem ser criticadas ou rejeitadas. Fora disto, não compreendemos o
comportamento espírita.
Se assim procedemos, ou devemos proceder, em
consonância com o caráter da Doutrina, é claro que temos condições para resistir
a quaisquer teorias ou mensagens fantasiosas, evitando o perigo de se incorporar
à Doutrina, como se com ela estivesse de completo acordo, o fruto de simples
suposições particulares, tanto faz de espírito desencarnado como encarnado.
Justamente por isso é que nos preocupamos, há muito, com a atualização
da cultura no meio espírita, a fim de evitar que certas terminologias
impressionantes ou certas ideias fascinantes sejam aceitas em nosso meio como
revelações incontestáveis ou como realizações científicas.
Duas
necessidades, portanto, se impõem cada vez mais em nosso movimento: estudo sério
da obra de Allan Kardec e atualização dos conhecimentos gerais, para que se
compreenda bem a solidez do Espiritismo em face das revoluções científicas de
nossa época. O Espiritismo, com isto, se tornará ainda mais respeitado e nunca
deixará de ser, ao mesmo tempo, uma fonte de consolações e
esperanças.
Fonte: Anuário Espírita 1965, pág. 53, ano II, nº 2 –
órgão de divulgação do Instituto de Difusão Espírita,
Araras-SP.
Deolindo Amorim nasceu na Bahia em 1906 e
desencarnou no Rio de Janeiro, em 1984. É considerado, ao lado de Carlos
Imbassahy e Herculano Pires, um dos maiores pensadores espíritas das Américas.
De estilo professoral, extremamente didático e elegante, Deolindo foi um dos
maiores divulgadores do espiritismo como cultura e voltado para a análise de
questões da atualidade. Fundou o Instituto de Cultura Espírita do Brasil (Iceb),
foi um dos idealizadores da Associação Brasileira de Jornalistas e Escritores
Espíritas (Abrajee) e graças ao seu empenho, em conjunto com a Liga Espírita do
Brasil, realizou-se no Rio de Janeiro, em 1949, o II Congresso Espírita
Pan-Americano.
Obras: Espiritismo e Criminologia; O Espiritismo e as
Doutrinas Espiritualistas; Africanismo e Espiritismo; O Espiritismo e os
Problemas Humanos; Ideias e Reminiscências Espíritas; Allan Kardec, o Homem e o
Meio, dentre outras.
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